para Rachel Genofre
Olha para a própria mão carregando a mala de couro destruída nas costuras pelas traças. Ao menos a mão ainda parece fazer alguma coisa direito.
— Desculpe, você sabe que horas são?
— 13:15h.
Percebe o líquido escuro escorrendo pelo zíper da bagagem. É um mau sinal. Sai apressadamente, sem agradecer a informação e deixa a moça falando sozinha. Lembra-se do som das fichas que caíam quando fazia uma ligação.
— Como sou idiota! Cabeça oca! Oca!
Resmunga para si, baixinho, como faz também pelos cantos da casa. Aliás, agora poderá fazer isso em alto e bom som, sem ninguém para atormentar sua privacidade. A sensação prazerosa de liberdade só não se completa porque o sol está a pino. Que bom que trouxe o lenço da neta, suas têmporas pingam. Esboça um sorriso de satisfação.
Já no parquinho da praça, empurra a mala para dentro do tubo do trenzinho. Abaixar-se naquela altura sempre lhe parece uma ideia descabida. Apoiando uma mão na coluna e a outra no cimento, aceita o desafio que se impõe cotidianamente. É preciso abri-la, mais uma vez, para se certificar. Ao puxar o zíper até o final, seus olhos brilham.
— O que você está fazendo aí?
A pequena menina está confusa. Nunca viu uma pessoa tão velha brincando no trenzinho do parque. Tem sido custoso manter a criatividade e sem saber como responder, fecha rapidamente a mala e responde:
— Estou brincando!
Ela dá um sorriso. É tudo o que quer ouvir. Sua mãe está absorta ao celular, em mais uma discussão com o gerente do banco.
— Como você chama? Quero brincar com você! Você parece meu avô!
— Então venha!
Estende a mão como de costume e a puxa para dentro do trenzinho.
— Quer ouvir uma história? Sou muito bom nisso!
— Sim, sim!
— Então sente-se aqui no meu colo.
Apesar de apertado e úmido, o tubo parece aconchegante para o momento. A menina deita a cabeça em seu colo e o observa ansiosa.
— Era uma vez uma menina muito distraída, que usava um lindo lenço azul no pescoço!Ao longe ela escuta a voz da mãe, preocupada:
— Júlia, Júlia, onde você está?
A menina já não consegue responder. As pernocas se debatem, enquanto ele a aperta com o lenço ensopado de suor, até deixar aquele pescoço — que ainda cheira a talco — roxo como as hortênsias dos canteiros. Uma criança quieta, como deve ser.
Sem mais demora, fecha os olhinhos castanhos e dobra a menina ao meio. Nessa idade são muito flexíveis, é pena que gritem tanto e exijam mimos e atenção. Abre o zíper da mala e a coloca junto da outra. Cabem perfeitamente. Acomoda o lenço por dentro dela para estancar o vazamento, fecha a bagagem e sai pelo outro lado do brinquedo.
— Socorro, me ajudem! Perdi minha filha! Júlia! Júlia! Onde você está? Júlia!
Ele segue pela calçada, sem nem precisar fingir demência: a velhice lhe acoberta os pecados e as mentiras.
Texto publicado e disponível em: Alinhavos v.5, n.2 - abril/2025