Poemas para acordar as infâncias

Toda a gente grande já foi criança um dia. 

Dorme, lá no fundo do peito, uma menina ou um menino. Talvez num espaço bem confinado, nossa criança interior fica trancafiada e só sai sob controle: quando não há gente grande entediante e engomada para julgar. Quando brincamos com um filho ou damos carinho num bicho, quando assistimos à uma animação ou tomamos sorvete… nessas horas a nossa criança fica agitada, quer sair e sorrir sem se preocupar com o que vem depois. 


Pular corda, de Roseana Murray

Se pudesse o menino pularia corda

com a linha do horizonte,

se deitaria sobre a curvatura

da Terra

para sempre e sempre

saudar o sol,

encheria os bolsos

de terra e girassóis.

Mas chove uma chuva

fina

e o menino vai até a cozinha

fritar ideias


A poesia, esse lugar onde tudo cabe e tudo pode ser, onde a palavra inventada ganha asas e sai barulhando folhas e mentes, acolhe a criança que a gente teima em esconder. Poetas, tão sábios e tão loucos, escrevem para nossas infâncias e nos acolhem na falta que ela nos faz.


É como se a infância não fosse um tempo, de Ana Martins Marques

É como se a infância não fosse um tempo

mas um lugar

com seus cumes seus esconderijos

suas pequenas clareiras

um lugar, aquele onde cometemos

nosso primeiro crime

há quem tenha matado um coelho

há quem tenha matado um sapo

há quem tenha matado um cão

há quem tenha mentido 

perseguido

destroçado

deixado morrer

por capricho

de minha parte matei uma criança:

uma menina

morreu em mim

por onde vou carrego

o seu cadáver

e a forma exata do seu corpo

repousa no meu corpo

como num vestido

largo demais


Desejo que nós, pessoas crescidas e agora já bem mais chatas, lembremos que toda a gente pequena será grande um dia, mas só um dia. Nada de apressar as coisas. Deixemos as crianças em paz. Bem sabemos o quanto dói agora, ao revisitar a memória, encontrar nossas infâncias amarrotadas, quem sabe esmagadas na força: nossas meninas e meninos de olhos perdidos, tentando encontrar uma fresta no coração para escapar antes que seja tarde.


Brasinhas do espaço, de Sergio Vaz

Eram criaturasde um planeta imaginário.

Herméticos neste mundo.

Todos se chamavam Speed Racer

e falavam uma língua estranha

que os adultos não entendiam.

Vorazes,

alimentavam-se de sonhos,

liberdade, vento,

de K-suco e pão com mortadela.

Esses monstrinhos,

queriam dominar a terra.

Chegavam aos montes

descendo ladeiras,

pilotando naves exóticas

feitas de tábua de compensado

e rodinhas de rolimã.

Não fosse o tempo,

teriam dominado o universo.


Minha coluna deste mês celebra a poesia e as infâncias esquecidas, as crianças que carregamos não como fardo, mas como presentes. É meu jeito, esse de escrever, de salvar as crianças de nossos tempos, desde Gaza ao Brasil. Na palavra eu invento toda a sorte de alegrias para as infâncias: a minha singela contribuição para que nossas meninas e meninos acordem e vivam livres e em paz, com sonho e amor.


Crescer, de Daniela Bonafé

Vejo você crescer:

flor, estrela da manhã,

menina do meu coração.

Onde brota o melhor do amor:

eu busco cores e sons pra te dar.

Dói até um tanto bem grande de mim

quando eu te acompanho assim,

borboleta no seu vaguear…

Porque sei que o vento a levará

para onde teu desejo mandar

e pode ser a léguas mil.

Menina do meu coração,

flor, estrela da manhã,

eu vejo você crescer.