A Voz da Ilustração: uma outra história

A ilustração é uma peça fundamental na literatura para as infâncias. Para além de dar imagem ou forma visual para a ideia do texto, ela é capaz de contar uma outra história; mas durante muito tempo, no contexto tradicional, a ilustração foi vista como um acessório do livro, isto é, algo que apenas complementava o texto.

Era comum encontrar livros chamados “infantis” com raras ilustrações, sempre figurativas, redundantes e pouco coloridas, mas que para a época eram como verdadeiras obras de arte, pintadas a tinta a óleo, por exemplo. O título “O Patinho Feio”, publicado em 1915 pela editora Melhoramentos, foi o primeiro livro ilustrado em cores no Brasil e ele não continha o nome do ilustrador, o que reforça que as ilustrações tinham um caráter descritivo e desimportante se comparadas ao texto escrito.

Demorou um bocado de tempo, e estamos falando de estudos após o ano 2000, para que diversos pesquisadores da Educação, da Literatura, da Arte, entre outros, se debruçassem sobre as inúmeras funções das ilustrações na literatura para as infâncias e chegassem a pensamentos bastante interessantes. Uma dessas funções é a ampliação do texto escrito, já que a criança precisa contextualizar para compreender o que lê e fazer seus próprios questionamentos e julgamentos a partir da leitura.

Nessa perspectiva e percebendo as publicações contemporâneas de literatura para as infâncias, confirma-se que as ilustrações não “enfeitam” ou explicam, não traduzem ou procuram dar significados iguais às palavras, não buscam qualquer equivalência ou convergência ao texto escrito, ao contrário, sugerem outras nuances e caminhos para a leitura, que deixa de ser linear. 

As ilustrações adicionam novas informações e precipitam diversos olhares e perguntas para o leitor, constituindo uma outra linguagem que caminha em diálogo com o texto, numa colaboração que não deve subestimar as múltiplas interpretações.

As linguagens verbal e visual em comunhão oportunizam ao leitor múltiplas possibilidades de fruição da obra, em que este pode se ater à superfície do texto, mas também explorar suas camadas, adentrando universos escondidos nessa conversa entre texto e imagem, complementando com sua própria imaginação as lacunas que propositalmente foram deixadas pelo escritor e pelo ilustrador.

Trago aqui alguns livros que possuem uma riqueza ímpar e um diálogo afiado entre texto e ilustração, desafiando o que os antigos chamavam de “livros para crianças pequenas”, reduzindo seu valor por terem poucas palavras e muitos desenhos.

Shel Silverstein, poeta, compositor, músico, cartunista e autor dos livros “A Árvore Generosa” e “A Parte que Falta” nos apresenta uma relação simbiótica entre ilustração e texto nessas duas publicações, em que as duas linguagens são como são como unha e carne.

Isso porque Shell escreveu e ilustrou ambos, algo que traduz com muita verdade o que de fato estava em seu projeto pessoal de escrita para as infâncias. As ilustrações, ainda que possam ser julgadas por seus traços simples, assumem grandiosidade no conjunto da obra.Podemos ver esse mesmo processo nos livros de Renato Moriconi, “Dia de Lua” e “Dia de Sol”, indicados para crianças muito pequenas e que participaram de importantes premiações.

Renato, conhecido por ilustrar diversos livros com versatilidade de estilos, traz a natureza de interdependência entre linguagens verbal e visual, o que significa que é impossível ler o livro sem a conjugação das duas coisas ao mesmo tempo. 

Essa indissociabilidade faz com que o pequeno leitor tenha uma experiência imersiva, habitando aquela história com todos os seus sentidos. Ainda nesse rol de escritores e ilustradores simultaneamente, indico os livros de Tim Warnes para as crianças em fase de alfabetização, como os maravilhosos “Perigoso” e “Perigoso - Esse livro contém coelhos” e os impressionantemente lindos e divertidos da Silvana Rando, todos os da série Gildo.

Há também os encontros felizes entre escritores e ilustradores. Apesar de serem pessoas diferentes, o projeto em comum do livro faz com que estejam em sincronicidade. Costumam se encontrar pela afinidade das temáticas com as quais se identificam ou pelo desejo de criarem os chamados “livros arte”. Neles, as ilustrações são capazes de contar uma outra história!

Tive a alegria de viver essa experiência como escritora de literatura para as infâncias com dois livros especialmente, em que os projetos foram pensados para que as linguagens visual e verbal se tornassem uma verdadeira Arte. “Soprinho, Brisa, Ventania e Tufão”, ilustrado por Tatiana Bianchini e “Bento e Tuca”, ilustrado por Lu Otto, ambos escritos por mim, são dois exemplos de como esses “casamentos” podem ser profícuos.

Durante o processo de construção desses livros, percebi as ilustrações funcionando como catalisadoras da imaginação e o que mais me chamou a atenção no que os pequenos leitores disseram após a fruição, é que se identificaram com os personagens, com as narrativas e sentiram a beleza.

Finalizo a coluna afirmando que nós, adultos, perdemos muito quando, equivocadamente, deixamos para lá os livros que possuem ilustrações e nos atemos apenas aos livros cheios de letras, palavras, frases e inúmeras páginas de texto em linguagem verbal, dizendo que os livros “cheios de figuras” são para as crianças. 

Para além de reforçarmos diversos preconceitos com essa atitude, deixamos de aproveitar a beleza que esses livros carregam, não só pela perfeita união entre ilustração e texto, como também pela capacidade de traduzir em tão breves páginas, conteúdos tão gigantes! 

Coluna disponível na íntegra em: Revista Voo Livre – Vol. 1, Nº 55, Abril de 2025 -