Ansioso, aguardava que a noite não demorasse.
Queria vê-la, mesmo que brevemente, antes de dormir.
Gostava de sentir o toque delicado de sua mão.
Sem pressa, podia apreciar aquele corpo repousando.
Reparava até no tecido da camisola que ela usava.
Orgulhava-se de ter o dorso esguio, forte e ereto.
Assim, podia avistar melhor cada detalhe e se destacar no quarto.
Um pouco soberbo, claro, por saber-se imprescindível na vida daquela moça.
Por vezes, a arrogância era tanta, que resolvia falhar só para vê-la irritada.
Dono de uma incandescência ímpar, era a mais bonita estrela da madrugada.
E mesmo despido, fazia charme com seu branco chapéu carioca.
Mal sabia a moça que ele tinha uma amante.
Sim! Passava o dia roçando nela e fitando o corpo rubro de sua outra paixão.
Magra e de poucas curvas, mais silenciosa e discreta, a amante guardava mil segredos.
Pena que as duas eram tão amigas e cochichavam a noite toda.
Será que elas tinham um plano?
Não duvidou de sua intuição e armou um jeito de acabar com elas.
Era melhor que ficasse livre de ambas para que enfim pudesse escolher outra...
Assim que a moça chega do trabalho, ele dá início à tragédia que tinha bolado.
Parece que há sempre uma forma de apagar as mulheres e seus vestígios.
Claro que como todos de sua espécie, aproveita para observá-la tirando as roupas antes do banho.
Assim que ela se senta na cama para tocar seu interruptor, ele usa da força.
Nenhuma novidade no front, não é mesmo?
Grosseiro e violento, puxa energia em excesso, fazendo um barulho estridente e apagando sua luz.
A moça, estranhando seu bom e velho companheiro, toca na lâmpada.
Pensa, ingênua, que pode estar desrosqueada.
E ele, mais uma vez, tomado de dúvidas sobre si e de certezas sobre elas, puxa ainda mais energia.
Sua luz incandescente explode nas mãos do seu primeiro amor.
A moça, machucada, chora por ela e pela outra.
O sangue das mãos dela, entre os estilhaços cravados nas palmas, escorre sem piedade sobre a amante, que fica ainda mais rubra.
Os segredos, textos tão vivos, confidências e poemas de toda uma vida, agora encharcados.
Está feito: a moça e a caderneta não sobreviverão juntas.
E ele, apesar de ser descartado imediatamente no lixo reciclável, segue sem arrependimentos.
Já fez a sua parte: domar desejos e apagar registros.
Daniela Bonafé
Texto disponível no link: Revista Alpendre Literário nº 3.pdf - Google Drive